terça-feira, 30 de agosto de 2011

A Poética Integrada de Chico Buarque[1]







Anazildo Vasconcelos da Silva

              A Poética Integrada compreende a produção lírica de Chico Buarque elaborada para cinema, espetáculos e shows de televisão, balé e teatro, ou seja, poemas que pressupõem uma proposição de realidade ficcional, fílmica ou teatral. Essa produção não difere criticamente da produção de motivação espontânea, são ambas líricas, pois, como afirmei antes, as peculiaridades da proposição de realidade pressuposta não interferem na natureza lírica do poema. Já disse também que o poema, sendo uma unidade e uma totalidade em si mesmo, rompe com os possíveis condicionamentos externos, é o que acontece com essa produção lírica integrada, que possui uma existência própria, uma vez que prescinde das fontes para ser compreendida. Por isso, os poemas integrados seguem o curso normal da lírica, figurando isoladamente em gravações e songbooks, indiferentes à existência da obra ou do espetáculo a que estão em princípio vinculados, incluindo as peças de autoria do próprio poeta, sozinho ou em parceria.  Trata-se de uma poesia lírica e não de uma poesia dramática, e a diferença entre as duas pode ser observada na peça Gota D’água, em que a poesia lírica está exemplificada nos poemas musicados que pressupõem a estrutura dramática e, portanto, se inserem na Poética Integrada (“Gota d’água”, “Basta um dia”, “Bem-querer”, “Sem açúcar”, etc.), enquanto a poesia dramática está exemplificada nos quase cinco mil versos rimados e metrificados que compõem as falas dos personagens.
         A peça foi propositalmente escrita em verso, de modo a identificar-se com a tragédia grega, mantendo a concepção formal da obra que lhe serve de modelo, a Medéia de Eurípides. Por outro lado, este exemplo de toda uma peça em versos, embora único, permite pensar que Chico Buarque decidiu ser compositor não apenas pelas injunções do projeto literário brasileiro, discutidas nos capítulos iniciais deste livro, mas também pela compulsão criativa de conjugar os talentos de músico e de poeta em um mesmo ato de criação. A prática separada talvez resultasse na redução de um em relação ao outro, o que não acontece com a criação vinculada em que a motivação lírica manifesta-se simultaneamente nas duas linguagens sob o mesmo diapasão criativo. Mesmo assim, considerando as parcerias, a presença do poeta na obra seria maior que a do músico, por isso, falei de dois talentos, já que trasladar a motivação criativa da música para o poema, considerando a natureza intuitiva do ato da criação, exige, no mínimo, uma apurada sensibilidade musical que faz do letrista um músico em potencial.
         É importante notar, todavia, que a Poética Integrada, estando vinculada à estrutura dramática da peça, sustenta o sentido trágico da ação dramática na tensão dialógica dos poemas, desempenhando uma função evidentemente dramática, mas sem perder sua natureza lírica. Ela interioriza a ação dramática nos poemas, mas não pode interferir no desenrolar do conflito que transcorre no âmbito da proposição de realidade teatral pressuposta. Não podendo suspender ou alterar o curso da ação dramática, a Poética Integrada projeta o sentido trágico do conflito imutável das personagens na tensão emocional das subjetividades líricas. Em Gota d’água[2], os autores utilizam a estrutura dramática de Medéia como forma de representação para um novo relato preenchimento, ou seja, de uma nova história, adotando, inclusive, como já mencionei, a forma poética do modelo, nomes originais de personagens, além de elementos estruturais da tragédia grega, como o Coro e o Corifeu. Através desse recurso, comum, aliás, na arte pós-moderna, a estrutura dramática da tragédia grega, imutável como o próprio destino inexorável, reproduz-se implacável no desenrolar da nova ação dramática, criando a dimensão trágica do novo relato preenchimento. O conflito da heroína em Gota d’água, diante da impossibilidade de alterar a realidade dramática da peça original, no âmbito da qual a nova heroína não pode atuar, não terá solução possível no curso da ação reproduzida na nova peça. Assim, esse conflito trágico consome-se em si mesmo, indiferente aos disfarces do novo relato preenchimento, como a troca de nomes, Medéia/Joana, e o deslocamento espaço-temporal da ação dramática.
            A Poética Integrada, interiorizando a ação dramática do relato preenchimento, vai reproduzindo a estrutura dramática originária na tensão emocional das subjetividades líricas como uma prédica oracular e, portanto, irrevogável. Assim, o destino trágico imutável de Medéia se reproduz irremediavelmente no conflito fatídico de Joana, alojando-se no fluxo da imagística poética que gera a tensão dialógica, e infiltrando-se, residualmente, no campo semântico da referencialidade sígnica, como o escoar célere do tempo e a sorrateira presença da morte nos poemas “Gota D’água” (“olha a voz que me resta/ olha a veia que salta/ pro desfecho da festa/ deixa em paz meu coração/ que ele é um pote até aqui de mágoas/ e qualquer desatenção, faça não/ pode ser a gota d’água”), “Basta um dia” (“pra mim/ basta um dia/ não mais que um dia/ um meio dia/ me dá/ só um dia/ e eu faço desatar/ a minha fantasia/ é só/o que eu pedia/ um dia pra aplacar/ minha agonia/ toda a sangria/ todo o veneno/ de um pequeno dia”), e “Bem-querer” (“e quando o seu bem-querer mentir/ que não vai haver adeus jamais/ há que responder com juras/ juras, juras, juras imorais/ há de me abraçar com a garra/ a garra, a garra, a garra dos mortais/ há de me rasgar com a fúria/ a fúria, a fúria, a fúria assim dos animais”), destacadamente nos sintagmas (“gota que falta/ o que resta/ o desfecho da festa/ basta um dia/ desatar a fantasia/ veia que salta/ toda a sangria/ todo o veneno/ abraçar com a garra dos mortais/ rasgar com a fúria dos animais”).
               A Poética Integrada, de acordo com a formulação aqui desenvolvida, tem, entre nós, sob o aspecto da autoria única, isto é, quando o autor da poesia integrada é o mesmo da estrutura dramática, Chico Buarque como seu principal representante, mas não o único, é claro. Antecedente consagrado é Orfeu da Conceição (1955) de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, também escrito em verso como a tragédia grega, em que os poemas interiorizam igualmente a ação dramática e reproduzem o destino imutável do Orfeu mítico no conflito trágico do Orfeu sambista, através da referencialidade do mito na imagística poética, sobretudo nas canções da subjetividade lírica do herói e nas falas do Coro e do Corifeu.
             Concluindo. A Poética Integrada, quando vinculada ao contexto da obra de que faz parte, interioriza a ação dramática e propaga o sentido trágico ou cômico do espetáculo na tensão emocional das subjetividades líricas, desempenhando uma inequívoca função dramática. Mas, quando desvinculada da representação simultânea com os textos originais, rompe, como qualquer poesia, com os possíveis condicionamentos externos da proposição de realidade pressuposta e insere-se naturalmente, sob o influxo do princípio estruturante da lírica buarqueana, no curso da produção lírica. Por isso, foi arrolada na formulação do projeto criativo sem nenhuma necessidade de distinguir, por exemplo, os poemas “Sem fantasia” e “Roda-Viva” que, embora integrem a estrutura teatral da peça Roda-Viva, em que exercem uma função dramática, quando vinculados ao princípio estruturante unificador da lírica buarqueana, não diferem dos demais, como “Realejo” e “A televisão”. A recíproca também pode ser verdadeira. Nada impede que Chico Buarque escreva uma nova peça, por exemplo, e insira alguns de seus poemas conhecidos na estrutura dramática, mesclados inclusive com outros novos criados especialmente para a nova peça. Assim, a Poética Integrada pode ser considerada uma obra independente, se configurada na unidade estrutural que lhe confere a proposição de realidade fílmica, teatral, etc. pressuposta, ou pode ser inserida naturalmente no curso da produção lírica, se considerada a partir da concepção de poesia e dos recursos poéticos que a vinculam ao projeto poético buarqueano. 
              Assim formulada, a Poética Integrada, reproduzindo uma estrutura dramática na imagística poética e na tensão dialógica das subjetividades líricas, constrói um referente poético intratextualizado que, para ser configurado, exige que seja tratada como uma obra em si mesma independente, destacada do conjunto da produção lírica.  Para uma operacionalização dessa Poética, farei uma análise do conjunto de poemas da peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra, vinculando os textos ao referente poético internamente elaborado, que, reproduzindo a estrutura dramática da peça, constrói, ao mesmo tempo, sua própria unidade estrutural.




[1] Ver o ensaio completo em SILVA, Anazildo vasconcelos da. Quem canta comigo: representações do social na poesia de Chico Buarque. Rio: Garamond, 2010.
[2] BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. Gota d`água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 







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